Uma das coisas que a escrita me ensinou é que a ficção tem vida própria. Os lugares ficcionais são muitas vezes mais reais do que a vista a partir da janela do quarto. As personagens ficcionais podem às vezes se tornar tão chegadas quanto as pessoas que mais estimamos. Eu lembro-me da primeira vez em que me apercebi disto, aos dez anos, ao ler O Deus das Moscas, quando chorei por causa da morte ficcional de um rapaz ficcional num lugar ficcional. Tinha sido porque o autor fora capaz de tornar aquilo real, real o suficiente para se acreditar. Foi nesse momento que, no meu íntimo, eu soube que queria ser mais do que um dedo numa página, a seguir as linhas impressas. Eu queria conduzir a máquina dos sonhos. Mais do que isso, eu queria ser dona dela.
Mas a máquina dos sonhos tem por hábito tomar ela própria as rédeas. Em 2000, o meu livro Chocolate, uma história engraçada sobre uma mulher chamada Vianne Rocher, a sua filha Anouk e a chocolataria delas tornou-se com alguma surpresa num sucesso de passa a palavra e depois num filme nomeado para um Óscar. Subitamente era um grande sucesso. As minhas palavras foram traduzidas para mais de cinquenta línguas, as minhas personagens tornaram-se conhecidas em todo o mundo e, em todo o lado, as pessoas tentavam descobrir a aldeia (ficcional) onde elas moravam.
Desde então tenho recebido uma avalancha de cartas de leitores a anunciar que tinham encontrado Lansquenet-sous-Tannes, ou até mesmo visitado a chocolataria de Vianne. Diversas aldeias no Sudoeste de França reinvindicam ser a “verdadeira” Lansquenet, algumas chegam mesmo a colocar cartazes a anunciar isso a turistas. Um fã japonês estava convencido de que Lansquenet era na verdade a sua aldeia e de que eu vivia secretamente lá, observando-o a ele e aos seus vizinhos.
O que tinha Lansquenet para conquistar os corações de tantos leitores? Mesmo agora, não faço ideia. Está para além do amor que tantos britânicos têm por França: o gosto pela comida francesa e pelo vinho; o charme do Sudoeste rural. Talvez seja uma nostalgia partilhada por um tempo maioritariamente ficcional, ou talvez alguns leitores se reconheçam de algum modo nas personagens da minha história.
De qualquer forma, a minha pequena viagem a Lansquenet levou-me mais londe do que alguma vez imaginei. Centenas de pessoas escreveram-me. Recebi ameaças de morte, propostas de casamento e muitas ofertas de chocolate. Vários donos de chocolatarias escreveram-me a contar que o meu livro inspirara o sonho deles; pais deram o nome de Vianne às filhas – um nome que eu pensava que tinha inventado, mas que é de facto o nome de uma aldeia a menos de cinco quilómetros da vila secreta em Gers na qual Lansquenet é baseada.
Em suma, foi uma viagem maravilhosa. Mas mesmo assim compreendi que tentar repetir esse sucesso apenas levaria à desilusão. E assim, tal como Vianne, segui em frente. Escrevi livros bastante diferentes: policiais, de fantasia, ficção negra. E disse a mim própria (e aos meus editores) que Lansquenet tinha ficado para trás, e que nem eu nem Vianne voltaríamos a visitar esse lugar.
Eu não sou Vianne Rocher. Mas temos coisas em comum: a teimosia e um hábito de fazer promessas a nós próprias que não temos a certeza de poder cumprir. Talvez seja por isso que, tendo prometido a mim própria que nunca haveria uma sequela a Chocolate, dei por mim a escrever sobre ela em Sapatos de Rebuçado, uma história passada em Paris quatro anos depois de Chocolate, na qual Vianne e a filha Anouk defrontam um mal ainda maior do que Francis Reynaud, o frio e intolerante padre de aldeia que se opôs a elas. Mas Sapatos de Rebuçado era bastante diferente da história de Chocolate. Vianne tinha perdido o rumo. Ela tem agora uma nova filha e Anouk, que tinha seis anos em Chocolate, está a entrar na adolescência. A pequena aldeia de Lansquenet era completamente diferente de Paris.
E no entanto alguns lugares (mesmo que ficcionais) têm o dom de permanecerem no nosso coração. Sempre suspeitei de que Lansquenet ainda não tinha terminado para Vianne (ou para mim), e que um dia podíamos regressar. O facto de sempre ter resistido a isto levou a que se tornasse ainda mais inevitável. E quanto mais resistia, mais dava por mim a pensar: porque não? Eu podia regressar. Só para ver o que aconteceria…
Eu tinha escolhido não passar Chocolate num lugar real. Queria a liberdade que a ficção permite: a liberdade para fazer as coisas como queria; para descrever a França da minha infância com toda a sua doce nostalgia. Como resultado, apesar de todas as suas referências modernas, o mundo de Chocolate era de alguma forma intemporal. Mas agora, ao encarar a ideia de lá regressar, eu tinha de considerar a possibilidade de, tal como Vianne, o meu mundo ter mudado. Poderia eu permitir que isso acontecesse? Atrever-me-ia?
Sapatos de Rebuçado foi recebido com alegria por alguns leitores por eu ter decidido revisitar Vianne, e por outros com indignação, até mesmo raiva. Porque tinha mudado Vianne? Porque tinha esta alma despreocupada e independente se tornado num ser desconfiado e reservado? A vida tinha mudado Vianne, e foi essa a razão pela qual a históra surgiu. A mudança é muitas vezes incómoda, mas é a mudança que alimenta a máquina dos sonhos, e eu sabia que, se quisesse regressar a Lansquenet, teria de haver mais mudanças.
Por isso decidi escrever o meu novo livro, chamado O Aroma das Especiarias. Nele, a pequena aldeia de Lansquenet-sous-Tannes, uma personagem por direito próprio, passava por uma grande agitação. É em parte esta agitação que traz Vianne de volta; e a mudança que traz provoca efeitos profundos na comunidade, afetando toda a gente, incluindo o velho adversário de Vianne, Francis Reynaud.
Em O Aroma das Especiarias, a vida (e Vianne Rocher) produziu as suas próprias mudanças em Reynaud, e o seu papel é diferente. Estou satisfeita com isso; não acredito em retratos a preto e branco de heróis e vilões, e sempre achei que ele e Vianne tinham mais em comum do que algum dos dois suspeitava. Como resultado disso, em O Aroma das Especiarias, ambos dão por si a defrontar o mesmo adversário, à medida que a política do século XXI entra no até agora intemporal mundo deles.
Quais foram as mudanças em Lansquenet? As ruas empedradas, as fábricas de curtumes abandonadas ao longo do rio, estão todas como quase sempre estiveram. Mas, numa extremidade da aldeia, desenvolveu-se uma comunidade marroquina, com os aromas do incenso, das especiarias, do kif e do chá de menta, e, em frente à igreja, um minarete. O livro passa-se durante o Ramadão, em agosto de 2010, imediatamente antes de a França banir o uso do véu islâmico, e Lansquenet, tal como o resto do país, tem de exorcisar os seus próprios demónios: a intolerância e a xenofobia. Com a França a confrontar o seu próprio futuro, depois de uma campanha eleitoral extremamente polarizada, estes temas talvez sejam mais pertinentes que nunca. Afinal, o Paraíso pode ser contaminado.
Foi difícil regressar a Lansquenet? Não tanto quanto imaginava. Tal como Vianne, eu resisti à sua atração, mas, quando finalmente cedi, foi quase como regressar a casa. Muitas coisas ainda estão na mesma; muitos velhos amigos ainda estão vivos. Dei por mim a recordar os aromas, os sons e as texturas, daí que a história esteja impregnada deles, tornando-a suficientemente real para que se possa acreditar nela.
Será que vou regressar? Uma parte de mim sabe que não devo responder a isso. Afinal, eu e Vianne temos um historial de fazer exatamente aquilo que tínhamos prometido a nós próprias nunca fazer. E ninguém é dono da máquina dos sonhos – se tivermos sorte, podemos andar nela durante um bocado e visitar alguns sítios maravilhosos. Tudo o que posso fazer é agarrar-me bem e ver onde ela escolhe levar-me a seguir.